Cinco meses de expectativa e poucas horas para morrer

Publicado em por Amandina Morbeck em Cotidiano, Gente

Hoje é dia 18 de dezembro de 2019. São 19h20 e há 7 horas as pessoas se despediram do corpo que abrigou um dos meus amigos mais antigos, o Laerte ou Lala, Lazinho, Véio, Veínho. Ele morreu ontem à tarde num hospital da capital paulista aos 60 anos de idade. Ontem, entre as mensagens de que ele havia sido entubado e levado para a UTI e a de que não mais respirava neste planeta passaram-se apenas 2 horas e meia – tudo muito rápido, como os cinco meses de luta entre a suspeita e a confirmação de câncer de pulmão, o início de um tratamento (que foi interrompido), depois o início de outro tratamento (que ficou incompleto), dezenas de exames e de agulhadas,  de idas e vindas entre seu apartamento e o hospital (onde praticamente passou a morar), de angústia, de medo, de expectativas e de agravamento do seu estado de saúde.

Não fui ao velório nem à cerimônia de cremação. Se tivesse sido possível ter alguns minutos para ficar a sós com seu corpo numa sala silenciosa, sem lamentos e pessoas ao redor, eu teria me deslocado esses 200 e poucos quilômetros para me despedir com um beijo carinhoso, agradecê-lo por esses anos e dizer um último “eu te amo”. Faço isso agora apenas em pensamento e com meu coração em luto. Por outro lado, é difícil demais imaginá-lo num caixão. Tenho certeza de que seus familiares foram acalentados por muitos abraços em meio à dor e às lágrimas compartilhadas.  

Reli todas as mensagens e ouvi novamente os áudios no Whatsapp desde o Réveillon do ano passado (2018/2019), quando passamos juntos na minha casa na Serra da Mantiqueira. Também revi nossas fotos. Fizemos caminhada, visitamos uma vinícola (a foto deste post é de lá), tomamos vinho, fomos a cachoeiras, fizemos o jantar da virada, brindamos, celebramos. Ele dormiu sentado enquanto conversávamos na varanda, na tarde do dia 31 de dezembro, com meu gatinho esticado em seu peito. Foram várias trocas ao longo deste ano de 2019, até a do dia 14 de julho, quando contou sobre sua ida ao hospital. Após uma tomografia, a suspeita de tumor no pulmão.

Susto e incredulidade, pois ele nunca havia fumado, alimentava-se de forma saudável e não havia hereditariedade em sua família. E o nódulo era muito grande. Mas e os sintomas, não apareceram antes? Será que apareceram, mas a atenção desviada para outras questões – familiares e profissionais – camuflou o que ele estava sentindo? Pode ser. Pelo tamanho do nódulo era difícil não haver alteração orgânica.

Mas o que isso importa agora? Eu o revi em agosto em seu apartamento. Ele estava abatido, vestido com um pijama xadrez, um cachecol enrolado no pescoço, a voz mais enfraquecida, um pouco encurvado. Estava esperançoso, prestes a iniciar um tratamento que prometia menos efeitos colaterais que a quimioterapia convencional. Fiz massagem em seus ombros e em sua cabeça – ele adorava! Ficou relaxado, ronronando de satisfação. Tomamos café da tarde, conversamos sobre as dificuldades de um diagnóstico desse, mas da necessidade de encarar tudo com o que fosse possível de otimismo, pois tudo indicava que o tumor era agressivo.

E isso se confirmou, pois ele perdeu a batalha – e eu perdi um amigo de uma amizade de 33 anos, seu companheiro perdeu o parceiro de 18 anos, sua mãe perdeu um filho exemplar, as irmãs perderam a referência do único irmão, seus sobrinhos perderam um tio amoroso, seus clientes perderam um profissional talentoso e criativo…

Quando recebi a informação sobre seu velório e sua cremação, aquilo me pareceu muito irreal. Havíamos combinado de envelhecermos juntos. Brincávamos que iríamos morar no seu lindo apartamento uns anos mais para frente, quando eu me cansasse ou não tivesse mais condições físicas de viajar pelo mundo. A suíte que eu ocupava nas vezes que o visitei ultimamente era “a minha”. Prometemos cuidar um do outro. Mas ele não esperou… Sei que ele não queria ir embora assim e agora. Ele lutou muito, ele fez tudo o que estava ao seu alcance para continuar mais tempo por aqui. Ele pagou o preço necessário para vencer o desafio que um tratamento oncológico exige. Não funcionou, infelizmente. Muito injusto ele não ter tido uma nova chance para aprender a ter mais tempo para si e para usufruir do que construiu ao longo de tantos anos de trabalho e de dedicação ao que tanto gostava de fazer.

Aqui em casa sua marca está por todos os lugares. Nas sugestões que deu durante a construção dela, no acabamento de pisos e de revestimentos que me levou para escolher, numa boa parte dos móveis que comprei ou de sua loja ou do que sobrou de um sítio que vendeu – móveis antigos restaurados por ele e que fizeram parte de sua história individual e da minha nas inúmeras visitas que fiz a ele ao longo dos anos. Móveis que nos cercaram enquanto conversávamos sobre coisas sérias ou dávamos risadas em meio a bobagens. Envelhecemos, nos aproximamos, nos afastamos, nos reconectamos, nos respeitamos, nos acalentamos, enfim, crescemos nesses 33 anos. Nem sempre concordamos um com o outro, mas nunca nos deixamos ir embora de vez. Mas agora não tive qualquer opção de não deixá-lo ir. Um lado de mim pensa que, se era para não ter cura, pelo menos seu sofrimento foi breve. Intenso, como ele foi em sua vida. Lazinho nunca foi mais ou menos.

Quis tanto visitá-lo no hospital nesse período de luta! Me ofereci várias vezes, queria estar perto, queria ajudar a cuidar, mas parece que ele não estava num momento para outras pessoas além de sua família. Comecei a sonhar com o dia em que faríamos uma celebração para brindarmos o fim do tratamento e só passei a duvidar de que isso realmente aconteceria quando ele praticamente parou de sair do hospital. Aquilo não era um bom sinal. Mas ele estava num hospital de ponta, de referência. Eu sabia que tudo o que fosse possível para combater essa doença seria feito. E foi, mas não deu certo. Às vezes não dá mesmo.  

A vida é tão breve e só temos este segundo. Está estranho pensar que aquela voz – que ouvi hoje em várias mensagens que ficaram no Whatsapp – calou-se para sempre. Está mais estranho ainda pensar que nunca mais verei meu veinho. Separei uma foto sua, em que está com uma aparência saudável e tranquila e um sorriso suave durante uma de suas viagens este ano, antes do pesadelo começar, e guardei aqui no meu celular para eu olhar quando a saudade bater. Foram muitos momentos compartilhados e essas lembranças estarão comigo até o dia em que eu estiver em seu lugar.

Eu te amo, Lazinho! E vou te amar para sempre. Difícil, quase sufocante acreditar que você não habita mais este planeta.

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Atualização: No dia 10/2/2020, data de seu aniversário, fizemos uma celebração em sua homenagem em minha casa na Mantiqueira. Ele pediu que queria que parte de suas cinzas fossem espalhadas aqui porque gostava demais deste lugar. Pessoas que o amavam vieram para esse dia e foi lindo! Plantamos uma árvore em sua homenagem no quintal, um flamboyant, que está crescendo e se fortalecendo e eu a batizei de arvinha do Lazinho. Ele era engenheiro agrônomo e amava ficar perto da natureza. Aqui, ele está cercado por ela e uma parte do que ele foi está vivendo em sua arvinha.

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