Vô Quinca e a febre amarela

Publicado em por Amandina Morbeck em Cotidiano, Saúde
Febre amarela e seus sintomas - Arte: Reprodução/Fit Aventura.

Febre amarela e seus sintomas – Arte: Reprodução/Fit Aventura.


Meu avô materno tinha um nome lindo, Joaquim Cândido Guimarães, e seu apelido era Quinca. Não o conheci, pois quando nasci ele já tinha morrido. Ouvi algumas histórias sobre ele contadas por minha mãe e uma delas era muito engraçada.

Ele era baiano e havia mudado para Goiás, onde casou-se com minha avó, sua segunda esposa, e teve alguns filhos, incluindo minha mãe. Naquele tempo, uma correspondência entre os dois Estados demorava uns seis meses e era dessa forma que ele mantinha contato com sua família e com seus amigos. De vez em quando, claro, chegava uma carta dando notícia da morte de alguém que havia ficado na Bahia. E aí, naquele dia e pelas próximas semanas, vô Quinca mudava totalmente. Assim que ficava sabendo, já ia para debaixo das cobertas, tremendo, cobrindo-se dos pés à cabeça, com medo do(a) falecido(a) vir assombrá-lo, puxando seus pés dele.

Minha avó sabia que não adiantava falar muita coisa, embora repetisse sempre que, se era para a alma daquela pessoa sair da Bahia e chegar até Goiás, isso teria acontecido antes. Mas a resposta do meu avô era sempre a mesma: “Mas só agora eu fiquei sabendo”. Medo é algo irracional realmente, e lá ficava meu avô, do seu jeito, lidando com seus demônios.

Mas o que o vô Quinca e essa história têm a ver com a febre amarela?

Apenas um convite à reflexão em relação ao fato de que hoje não existe mais esse tempo de meses para uma carta chegar a qualquer lugar do planeta. Da mesma forma, uma doença também não fica mais confinada a seu lugar de origem. Com a facilidade de deslocamento que o desenvolvimento nos proporcionou, um vírus ou uma bactéria é transportada (confortavelmente alojada no organismo de um ser vivo) em questão de horas de um país a outro. Então, o que dizer de um Estado ou de uma cidade a outra, como está acontecendo com esse surto de febre amarela em nosso país? É preocupante, por exemplo, saber que dentro de algumas semanas milhares de pessoas estarão se deslocando, entre distâncias variadas, para aproveitarem o feriado de carnaval. Como acreditar que uma doença assim pode ficar restrita a uma pequena área?

Por ora, sabe-se que o foco é no nordeste de Minas Gerais (com a maioria das mortes confirmadas nas cidades de Ladainha, Teófilo Otoni, Ipanema etc. – leia matéria aqui), próximo da divisa com Bahia e Espírito Santo e que esse é o pior surto registrado no Estado. No entanto, uma pessoa que contraiu a doença em Januária, nessa região de Minas, morreu em Brasília; uma outra, que contraiu a doença em Teófilo Otoni, morreu em São Paulo – e a distância entre essas duas cidades é de mais de 1.000 km.

Aedes aegypti é o mosquito transmissor da febre amarela no meio urbano - Foto: Reprodução/gcn.net.br.

Aedes aegypti é o mosquito transmissor da febre amarela no meio urbano – Foto: Reprodução/gcn.net.br.

Reurbanização da febre amarela

Uma grande preocupação entre os profissionais da saúde é que a febre amarela – que nunca desapareceu do meio silvestre – volte a circular nas áreas urbanas, de onde havia sido erradicada desde 1942. Estudos indicam que apenas 60% da população brasileira está vacinada contra a doença, quando o recomendado é 95%. Em todo o Estado de Minas Gerais, pouco menos da metade das pessoas (49,7%) tomou a vacina nos últimos dez anos.

Pontos importantes sobre a febre amarela

Das observações de Paulo Machado, diretor do Centro Municipal de Saúde Oswaldo Cruz e professor de saúde pública do curso de enfermagem da Universidade Veiga de Almeida, no Rio Janeiro, faço a lista a seguir em relação à doença (matéria completa aqui):

  • a maior parte das pessoas não apresenta sintomas inicialmente e a febre não tem tratamento;
  • depois de contraída a doença, a primeira fase é assintomática, como se a pessoa tivesse uma virose qualquer;
  • 15% de quem passa pela primeira fase desenvolve a segunda fase, que é bem mais grave;
  • desses 15%, metade morre;
  • a vacina é segura, mas tem contraindicações, como:
    • evitar o uso de medicamentos baseados em ácido acetilsalicílico, como acontece em caso de dengue;
    • não devem ser vacinados – pessoas com imunidade baixa por causa de tratamento crônico ou em recuperação de outra doença; pessoas alérgicas à proteína do ovo; grávidas; bebês abaixo de nove meses (em caso de surto autoriza-se a partir de seis meses, mas abaixo disso pode causar danos neurológicos); idosos com sistema imunológico debilitado.

Mosquitos transmissores e descontrole

A febre amarela silvestre é transmitida pelos mosquitos haemagogus e sabethes, enquanto a versão urbana da doença é transmitida pelo aedes aegypti, o mesmo desgramado que transmite dengue, chikungunya e zika.

O problema está no que vimos acontecer, repetidamente, com a dengue em nosso país. Entra ano, sai ano e ele continua a infectar as pessoas sem que haja ações verdadeiras dos governos para combate do mosquito.

Com a febre amarela não será diferente: se ela espalhar e chegar às grandes cidades, ficará praticamente impossível ser controlada.

Você pode transmitir a doença a alguém

Digamos que você seja uma dessas pessoas que não foi vacinada ou que a vacina venceu e você não se preocupou em tomar a dose de reforço depois de dez anos e foi picada pelo mosquito. Como “apenas” 15% das pessoas infectadas desenvolvem doença grave, pode ser que você fique nos 85% que vai sair bem.

Acontece que, se no período de incubação do vírus, de apenas cinco dias, você for picado pelo mosquito transmissor, ele levará seu sangue contaminado e infectará alguém. Essa pessoa pode não ter o sistema imunológico tão bom quanto o seu e fazer parte dos 15% que passam para a fase secundária da febre amarela – e o que é pior, ela pode entrar para a estatística dos 50% que não sobrevivem.

Dessa forma, sem que você saiba, você será indiretamente responsável por ajudar na transmissão da doença. Veja este parágrafo do Centro de Informações em Saúde para Viajantes (Cives) da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

“As facilidades de locomoção e o elevado número de pessoas que deslocam entre as áreas de risco fazem com que a possibilidade de reintrodução da febre amarela nas cidades seja preocupante e permanente. A febre amarela é geralmente adquirida quando uma pessoa não vacinada viaja (turismo, trabalho) para o interior do país (áreas rurais, regiões de cerrado, florestas). Uma vez infectada, a pessoa pode, ao retornar, servir como fonte de infecção para o Aëdes aegypti, que então pode iniciar a transmissão da febre amarela em área urbana.”

A vacina contra febre amarela é gratuita e aplicada em postos de saúde - Foto: Reprodução/Diário de

A vacina é gratuita e aplicada em postos de saúde – Foto: Reprodução/Diário de Goiás.

Sintomas

Dor local: abdômen, costas ou músculos
No corpo: calafrios, fadiga, febre (bem alta, acima de 38 graus), mal-estar ou perda de apetite
No aparelho gastrointestinal: náusea ou vômito
Também comum: confusão mental, dor de cabeça, hemorragia ou icterícia
Leia aqui o artigo “Febre amarela: sintomas, transmissão e prevenção”, publicado pela Fiocruz.

 

Dr. Dráuzio Varella sobreviveu à febre amarela

Em 2004, cinco casos da doença foram notificados pela Vigilância Sanitária, com apenas dois sobreviventes. Dráuzio foi um deles. Ele quase morreu. Em entrevista à Carta Capital, ele conta:

“Fui infectado durante uma viagem à Amazônia. Havia tomado a vacina muitos anos antes e não havia tomado a dose de reforço. No estágio em que eu cheguei, o risco de morte era de 80%. E não tem remédio específico para tratar a doença.”

Leia a entrevista completa aqui.

Voltando ao vô Quinca

No tempo em que as correspondências chegavam a cavalo até meu avô, certamente a transmissão de doenças – como a febre amarela – fora dos locais onde ocorriam os focos era praticamente impossível. Mas se chegasse algo assim até ele, de nada adiantaria se enfiar embaixo das cobertas para se proteger. Na verdade, ele não teria muito o que fazer naquela época para prevenir, pois a vacina só foi descoberta em 1937 por um microbiologista sul-africano chamado Max Theiler (que recebeu o prêmio Nobel de medicina em 1951). Imagine quanto tempo depois ela deve ter chegado à sua pequena cidade no interior de Goiás…

Felizmente, não é nosso caso hoje, quando podemos evitar a contaminação e também um possível papel na cadeia de transmissão por meio de uma atitude simples e altamente eficiente: sermos vacinados. Mas isso certamente é uma escolha pessoal.

(Texto: Amandina Morbeck)

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