Por trás das aparências

Publicado em por Amandina Morbeck em Cotidiano
Por trás das aparências.

Quando a máscara cai – Foto: Dhester/MorgueFiles.

Alguns anos atrás conheci esse meu amigo já com seus 80 e poucos anos. Ele havia tido um infarto bem antes de nos conhecermos, que deixou seu coração fraco, e também sofria de uma grave doença visual. Ele tinha imensa dificuldade para ler e nas poucas vezes que ainda saía sozinho à rua, precisava contar com a generosidade das pessoas para ajudá-lo – e mais de uma vez teve problemas, como queda e atropelamento. Mais que qualquer questão física, ele era muito, muito só.

Eu o conheci por meio de uma amiga que disse que achava que tínhamos coisas em comum, apesar da grande diferença de idade, pois ambos gostávamos de ler, de saber do que acontecia no mundo, de discutir sobre temas diversos, de falar inglês e de música clássica. De fala mansa e sorriso fácil, realmente tivemos uma conexão muito grande.

Aos domingos, geralmente ia a sua casa para ler para ele. Ia pela manhã, almoçávamos, depois conversávamos, então eu lia mais um pouco e geralmente saía no fim da tarde. Também o levei para almoçar fora algumas vezes – ele sempre precisava ser servido e tinha uma paciência enorme. Uma vez por semana também almoçava com ele.

De carne, só comia peixe e falava dos malefícios da carne vermelha. Comia tudo integral, tomava suco verde todos os dias, os comprimidos de chlorella estavam sempre no pires a seu alcance para tomar às refeições, tomava também suco de frutas no meio da tarde e chá verde após as refeições.

Como ele foi aposentado por invalidez ainda muito jovem – por causa da degeneração visual – e havia tido um emprego muito bom numa estatal, dinheiro não era preocupação para ele, mas sua vida era bem simples. Ele tinha uma ajudante 24 horas por dia, seu apartamento era bonito e funcional e suas maiores preocupações eram com a manutenção de sua saúde – por isso era quase vegetariano e sempre fazia check-ups periódicos. Por sua aparência, ninguém dizia que ele tinha mais de 80 anos.

Conversávamos muito e seu discurso era de um pacifista, de alguém que respeitava a natureza e os animais e eu o admirava muito. Ele era inteligente, sua mente estava ótima, ouvia a revista Veja toda semana, que recebia gravada da Fundação Dorina Nowill (com sede em São Paulo, é uma ONG que trabalha pela inclusão social de deficientes visuais) e não esquecia nada.

Um dia, fui a seu apartamento e ele pediu para eu procurar um texto que disse que havia separado para mim (não consigo lembrar o assunto). Seguindo suas orientações, fui até uma parte da estante e encontrei alguns papéis impressos. Por não saber qual seria, fui folheando todos enquanto lia rapidamente o conteúdo. E foi aí que descobri que meu amigo defensor da natureza e quase vegetariano ganhava dinheiro investindo em arrobas de boi… Estava lá no contrato, um alto valor investido e um outro mundo por trás das aparências. Não encontrei o tal texto que ele queria, tampouco comentei sobre o que eu havia lido. Não era da minha conta, mas algo se quebrou ali.

Fiquei muito decepcionada, não posso negar. Muito fácil ficar com discurso de preservação e de respeito ao meio ambiente e aos seres vivos enquanto se ganha dinheiro com o oposto – pois é inegável o impacto que a criação de gado, em larga escala, provoca na natureza.

Naquela época eu já estava planejando minha mudança para São Paulo e alguns meses mais tarde nos despedimos. Ainda nos falamos algumas vezes ao telefone e nos reencontramos em 2007, quando o visitei. Foi a última vez que nos vimos. Ele faleceu logo depois por problemas cardíacos.

Vez ou outra me lembro dele e também dessa história das arrobas. Aprendi muitas coisas com ele. Uma delas é não ter um discurso diferente da minha prática, não importa em que circunstâncias.

De vez em quando ainda sinto saudade dos nossos encontros. Como hoje.

Amandina Morbeck

banner - 30 dias de meditação numa selva na tailândia - e-book


Deixe seu comentário