Eric e a Baden Baden

Publicado em por Amandina Morbeck em Cotidiano
Foto: Eric Wroclawski.

Eric Roger Wroclawski – Foto: Reprodução.

Cheguei ao consultório do Dr. Eric Wroclawski, localizado no bairro Itaim Bibi na capital paulista, pouco antes das 23 horas – isso mesmo: num consultório médico às 23 horas. Só que eu não estava ali para uma consulta, mas para conversar sobre trabalho. Eu havia recebido uma ligação dele dias antes, quando me perguntou se eu tinha disponibilidade para fazer seu memorial acadêmico e para atualizar seu currículo Lattes. Um amigo dele, também médico, para quem eu já trabalhava há alguns anos, havia indicado meu nome.

Estranhei ele ter marcado para conversarmos a essa hora da noite, mas foi pouco antes desse horário que vi o último paciente sair de sua sala e se despedir da secretária. Entrei em seguida e me deparei com um homem alto, bem forte, cabelos grisalhos e um sorriso grande. Simpatizei com aquele judeu nascido no Marrocos nos primeiros minutos de conversa. Ele era cirurgião e urologista e explicou por que precisava do memorial e do Lattes: para concorrer à vaga de professor titular na disciplina de urologia da Faculdade de Medicina do ABC em Santo André, onde já trabalhava há anos. Falou sobre o curtíssimo prazo para preparar tudo e perguntou se eu aceitava o desafio. Eu disse que sim, já que ele também topou o valor que eu cobrava por hora.

Combinamos que eu trabalharia em seu home office no apartamento onde morava com sua família e onde estavam todos os seus documentos. O que eu não tinha ideia, porém, era do tamanho de sua produção profissional e acadêmica: dezenas de estudos, trocentos artigos científicos, mais de uma dezena de livros, centenas de trabalhos apresentados no Brasil e no exterior, diversos eventos científicos organizados, apresentador de programa de TV, participante de bate-papos on-line promovidos por portais como UOL para responder perguntas de internautas sobre assuntos como câncer de próstata e prevenção, entrevistas, orientações a mestrandos e doutorandos, editor de revistas científicas, além dos vários cargos na carreira, como presidente de sociedades médicas nacionais e internacionais e vice-presidente do Hospital Albert Einstein (que, em sua homenagem, tem inclusive um prêmio em seu nome voltado para o fomento e a divulgação de estudos nacionais na área da saúde). Fora os prêmios e as condecorações, como a medalha Amigo da Marinha, concedida pela Marinha do Brasil, e a Comenda de Excelência Urológia, da Sociedade Brasileira de Urologia, entre tantos outros. E para completar, escrevia superbem, era hiperarticulado e um apaixonado saxofonista.

Prêmio Eric Roger Wroclawski para artigos científicos nacionais na área da saúde.

Prêmio em seu nome para artigos científicos nacionais na área da saúde.

Comecei a trabalhar com pique total. Aos poucos, os dias viraram semanas que viraram meses de convivência, de conversas sobre a melhor maneira de organizar tudo, de discordâncias, de como poderíamos destacar aquilo que era mais relevante e também de amenidades do dia a dia. Com ele e sua família, compartilhei desjejuns e jantares e ele disse que era para eu chamá-lo de Eric, sem doutor.

Eu entendia a urgência por causa da data já definida, mas não entendia por que tinha de ser naquela pressa toda, por que um cara tão novo, com apenas 55 anos de idade, não podia esperar mais um ano, por exemplo, e ter até uma história ainda mais relevante para contar, considerando tudo o que já havia visto sobre suas atividades até então. Às vezes, quando ele saía para trabalhar de manhã eu já estava no home office e quando ele voltava à noite, também. No final, quando o prazo para entregar tudo para a gráfica estava se aproximando, dormia na casa dele para ganhar o máximo de tempo possível. Foi insano.

E foi numa dessas noites que ele chegou na porta do home office e disse para eu dar um tempo para conversar um pouco com ele e com sua esposa. Quando cheguei até onde eles estavam, havia uma garrafa de cerveja e ele perguntou se eu queria fazer um brinde com eles. Eu disse que sim e foi aí que experimentei a Baden Baden pela primeira vez (e realmente nunca a esqueci – rs). Acho que era red ale, não me lembro bem; o que sei é que adorei! Conversamos trivialidades e ele contou que adorava Campos do Jordão, berço daquela breja deliciosa. Embora tivesse um apartamento na praia, disse que Campos era seu xodó. Depois, jantamos e voltei ao trampo.

Celebro a vida do Eric e seu legado em cada Baden Baden que tomo - Foto: Divulgação.

Celebro a vida do Eric e seu legado em cada Baden Baden que tomo – Foto: Divulgação.

Cumpridas todas as etapas, chegou o grande dia de sua apresentação/aula na faculdade em Santo André. Fui com ele de carona, demos boas risadas, pois ele havia comprado um carro que tinha comando de voz e estava se divertindo com isso. Ele dizia: “Quer ver?” e dava o comando para ligar para uma ou outra pessoa para me mostrar como funcionava e como aquilo era legal. Achei um barato aquele cara, com toda a sua história, com tanto de conhecimento que tinha, a caminho para encarar uma banca acadêmica, divertindo-se com uma novidade tecnológica, vivendo apenas o momento presente. Na faculdade, minutos depois, sua apresentação foi magnífica no auditório lotado com familiares, amigos, colegas de trabalho, alunos.

Fiquei contente por ter contribuído para aquele momento, participei do almoço após a apresentação e fui para casa. No fim da tarde, recebi uma ligação dele para me perguntar o que eu havia achado. Eu disse que tinha gostado muito e conversamos sobre outras coisas, inclusive comentei que havia achado muito legal sua réplica a um dos participantes da banca que disse, de forma bem sarcástica, que ele deveria ter dado a aula de pé, não sentado num banco alto, e que aquilo era um ponto negativo para ele. Sua resposta, de forma bem tranquila, sem nada de pedante foi: “Se o senhor acha isso, não posso fazer nada. É sua opinião”. Ao telefone, ele riu e perguntou: “Sabe com quem aprendi isso?”. E antes que eu respondesse, continuou: “Com você, quando discutíamos sobre o trabalho e, ao discordarmos, você nunca bateu de frente para defender seu ponto de vista, apenas dizia que não pensava da mesma forma, mas se eu queria daquele jeito, tudo bem”. Realmente, nunca tive necessidade de autoafirmação. Dou minha opinião quando necessário, mas não sou de tentar convencer ninguém em relação ao que penso. Fiquei surpresa por ele ter incorporado um detalhe do meu jeito com ele e, mais ainda, por ter me dito.

Antes de nos despedirmos ele disse que eu precisava voltar ao seu apartamento para arrumar os vários volumes impressos do memorial e do Lattes e também as caixas de documentos que seriam devolvidos para ele e para continuar a atualização do currículo porque ele continuava publicando, participando de trabalhos que eram apresentados por seus alunos e orientandos etc. Combinamos que descansaríamos uns dias antes de recomeçarmos.

No dia seguinte, recebi flores de agradecimento em seu nome e depois ganhei um presente em dinheiro para eu fazer o que quisesse. Quis que esse presente ficasse na minha memória para sempre, então, alguns meses depois, financiei a maior parte de um sonho antigo: viajar de carro por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Nos 6.000 km que rodei, visitei minha família, conheci o Pantanal nos dois Estados, realizei meu desejo de pedalar na Transpantaneira, fui até a Serra do Roncador, passei por Chapada dos Guimarães e explorei Bonito. Lembrança melhor não há.

Na data combinada para a retomada do trabalho de atualização, voltei ao apartamento de Eric e uma das empregadas abriu a porta para mim, perguntando se eu sabia o que tinha acontecido com ele. Respondi que não. “Ele foi internado no Einstein. Ele tem câncer pelo corpo e não tem como fazer mais nada.” Meu coração tropeçou, senti um nó se formar na garganta e meus olhos encheram d’água. Como assim?

Como assim que ele havia descoberto o câncer – que ele conhecia bem porque tratava pacientes afetados por ele – alguns anos antes. Havia tentado todos os tratamentos possíveis, mas não teve jeito. Ele sabia como a doença evoluiria, ciente de todas as etapas… Lembrei que ele reclamava de dores quando convivíamos, mas eu achava que tinha a ver com o tamanho e com o peso dele e nunca, nunca o vi reclamar de qualquer coisa ou de mau humor. Por isso a aula sentado no banquinho – ele não aguentava ficar de pé tanto tempo… Ele sabia que tinha pouco tempo de vida e talvez por isso mergulhou tão vorazmente no trabalho, nas pesquisas, nos estudos compartilhados com alunos, orientandos e colegas de profissão, aceitou todos os cargos que lhe foram oferecidos, publicou, apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, atendeu no consultório, fez cirurgias em vários hospitais, inclusive no dia anterior à sua própria internação. Ele gostava do que fazia e talvez quisesse também deixar um legado pra lá de relevante. Durante aqueles meses de convivência ele sabia que não havia mais o que ser feito para ele, que era questão de tempo. Por isso a pressa, pois ele não podia desperdiçar um minuto. E apenas ele, a esposa e os dois filhos sabiam a  verdade. Sua doença e a impossibilidade de cura pegou todo mundo, fora desse pequeno círculo, de surpresa.

Triste, triste, triste, continuei trabalhando até zerar o que ele havia deixado como produção direta e uma tarde fui visitá-lo no hospital. Na semi-intensiva estavam a mulher dele, uma amiga e, em meio a tubos e monitores, o Eric bonachão, sorridente e carinhoso. Fiquei meio sem-graça quando entrei e ele disse: “Vem cá, Aman, vem me dar um beijo”. Fiquei na ponta dos pés, a cama era alta e só consegui alcançar seu braço. Ele tentou virar a cabeça para eu beijá-lo na bochecha, como sempre fazia, mas não conseguiu. Conversamos um pouco. Ele disse que estava bem e que ficou contente por eu ter ido vê-lo. Um amigo, médico do hospital, chegou logo depois e eles começaram a conversar. Um enfermeiro entrou em seguida e a mulher dele disse que precisávamos deixá-los a sós. Fui até ele de novo e nos despedimos. Foi a última vez que o vi…

Ele ficou internado um tempão e, mesmo naquele ambiente, continuou trabalhando, discutindo casos médicos, organizando edições de revistas das quais era editor, fazendo reuniões com alunos e colegas no quarto e, um mês antes de morrer, deu uma palestra por videoconferência da cama do hospital num congresso de urologia. Também tocou saxofone duas vezes e assistiu ao casamento de seu filho mais velho, que foi realizado lá para que ele participasse, já que não podia sair.

No dia 19 de junho de 2009 ele se foi. Justo naquele dia eu estava assistindo à defesa de tese de um amigo, com o celular no silencioso e, quando vi as ligações e retornei para saber do que se tratava, era tarde demais. Não daria tempo de chegar ao Einstein, onde aconteceu o velório. Chorei muito e me despedi mentalmente, agradecendo-o mais uma vez por tudo, pelo que me afetou diretamente nos meses que convivemos e pelo que ele fez por outras pessoas em sua profissão. Mas aquela pena por ele ter morrido tão jovem, com tanto por realizar nunca me abandonou e ainda me emociono muito quando penso nele. Eu gostava dele pra caramba!

Portal na entrada de Campos do Jordão - Foto: Reprodução.

Portal na entrada de Campos do Jordão – Foto: Reprodução.

O tempo voa e há pouco mais de dois anos saí de São Paulo e mudei para a Serra da Mantiqueira. Sou vizinha de Campos do Jordão agora e, graças a essa proximidade, já fui até lá algumas vezes, inclusive para visitar a fábrica da Baden Baden. Não tem como não lembrar do Eric naquela cidade. Não tem como não pensar nele e lembrar da nossa Baden Baden compartilhada. E sempre que bebo uma Baden, mentalmente faço um brinde a ele, ao seu incrível legado e ao quanto ele continua sendo uma inspiração para mim. Uma vida que realmente merece ser celebrada.

Finalizo com uma de suas frases que mais gosto: “Não há vitória sem trabalho e conquista sem suor. Entre o bônus e o ônus há mais do que apenas uma letra”.

Valeu, Eric! Obrigada mesmo por tudo! Cheers!

Texto: Amandina Morbeck
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