Ana Elisa Boscarioli, a primeira brasileira no cume do Everest [Entrevista]

Publicado em por Amandina Morbeck em Entrevistas
Ana Elisa Boscarioli no Aconcágua em 2003 - Foto: Arquivo pessoal.

Ana Elisa no Aconcágua em 2003 – Foto: Arquivo pessoal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Essa entrevista que fiz com Ana Elisa Boscarioli aconteceu em 2006. Na época eu trabalhava como repórter na revista Aventura&Ação e, mensalmente, entrevistava uma mulher com destaque no mundo da aventura (no presente ou no passado). Para reprodução aqui, atualizei as informações em janeiro/2016.

Ana Elisa Boscarioli é paulista de Igarapava, mãe, médica formada pela Unicamp especializada em cirurgiã plástica e… montanhista. Ela gosta de aventura e quando a entrevistei, tinha acabado de voltar do Nepal, de onde chegou vitoriosa após conseguir alcançar o cume do Monte Everest, a 8.848 metros de altitude, tornando-se a primeira brasileira a conseguir tal feito. Só que ela não parou aí. Nesses nove anos passados, ela conquistou um outro título: de primeira brasileira a finalizar o projeto Seven Summits ou Sete Cumes*, que significa chegar ao topo da montanha mais alta em cada um dos sete continentes. Grande feito por quem tem muito amor pelas montanhas, pelos desafios e riscos que elas impõem – como gelo, neve, frio, congelamento, ventos forte e ar rarefeito, entre outros – e pela vontade de superar cada um deles.

Conversamos quando ela ainda saboreava, por um lado um pouco incrédula, a felicidade de ter chegado ao topo do mundo. Confira abaixo:

Amandina Morbeck: Como surgiu o desejo de chegar ao cume do Everest?
Ana Elisa Bosacarioli: Em 1999, fui fazer um trekking ao acampamento base do Everest. De lá, via as pessoas subindo a cascata de gelo [Khumbu Icefall] em direção ao topo da montanha. Olhei para ele, lá longe, e senti uma vontade imensa de chegar até lá também. Voltei e fui me preparar para isso.

AM: Você acabou picada pelo bug da montanha. E o que você fez para realizar o seu sonho?
AEB: Durante uns seis anos, escalei montanhas nos Andres (Bolívia, Chile e Argentina). No ano passado [setembro/2005], fui para o Himalaia e subi uma montanha acima de 8.000 metros de altitute, o Cho Ouy, que tem 8.201. Precisava adquirir experiência. Fisicamente, treinei bastante nos últimos dois anos (corrida, natação e ciclismo), participei de maratonas e fiz o Ironman 2005, em Florianópolis, em 15 horas. Então, senti que estava preparada para voltar ao Nepal para tentar o cume do Everest.

AM: O que acontece com o corpo em atitudes mais elevadas?
AEB:
Ele tem de se adaptar para funcionar com menos oxigênio, que precisa chegar o mais rapidamente possível aos tecidos. Com isso, a frequência cardíaca aumenta, mesmo em repouso, e o corpo começa a produzir novas hemácias para mais “carregadores” para esse pouco oxigênio. O rim também funciona de outra forma, aumentando a diurese (faz-se mais xixi) para que o sangue fique mais concentrado. À medida que você sobe a altitudes mais altas e percebe que precisa urinar mais vezes, isso é sinal de aclimatação [sinal de que se corpo está mais adaptado ao ambiente inóspito].

AM: Fale sobre sua experiência no Cho Oyu?
AEB: Fiz essa aventura com a empresa Adventure Consultants. Eu tinha muito medo de 8.000 metros, do Himalaia, sem ter experiência, por isso escolhi uma empresa que há mais de dez anos, todos os anos, faz esse roteiro. A partir do 7.500 metros eu utilizei oxigênio suplementar. E mesmo assim não foi fácil. Não é só porque alguém usa oxigênio que significa que seja fácil. E, assim, tornei-me a primeira brasileira a fazer um cume acima de 8.000 metros.

Ana Elisa Boscarioli no topo do Everest, a 8.848 metros de altitude - Foto: Arquivo pessoal.

No topo do Everest, a 8.848 metros de altitude – Foto: Arquivo pessoal.

AM: Como as pessoas ao seu redor, principalmente sua família, viram a sua decisão de tentar chegar ao topo do Everest?
AEB: Sempre gostei de esportes, de natureza e de aventura e já fazia algumas trilhas. Então, não foi grande surpresa para ninguém.

AM: Mas ir para o Everest é diferente.
AEB: Sim, mas as pessoas foram se acostumando. Primeiro, fui para o acampamento base, a 5.300 metros, por exemplo. Depois, fui para o Aconcágua [Argentina] em 2001, minha primeira experiência a 7.000 metros, mas não consegui chegar ao cume, parei na Canaleta. Aí, veio o Cho Oyu.

AM: Como você contatava sua família nesses dois meses que ficou no Everest?
AEB: Eu tinha um telefone via satélite, mas procurava falar todos os dias com minha filha. Falava também com minha assessora de imprensa para que transmitisse as notícias aos amigos e à imprensa.

AM: Você voltou ao Aconcágua depois de 2001?
AEB: Sim, mas antes fiz cursos de escalada em rocha e também em gelo. E foi aí que conheci o Vitor Negrete. Depois, escalamos no Monte Condoriri e fizemos outros cumes pela América do Sul. Por fim, fui com o Vitor escalar o Aconcágua pela via direta do Glaciar Polonês em janeiro de 2003. E acabei me tornando a primeira brasileira a fazer a via direta. Juntos, Vitor e eu fizemos também um curso de escalada em cascata de gelo.

AM: Ao Everest você foi como participante de uma expedição?
AEB: Sim. Eu precisava de orientação, não tenho experiência em 8.000 metros, nem sei prever o momento certo para atacar o cume. Gostaria de ter um pouco mais de segurança, principalmente por causa de minha filha. Não me acho no direito de morrer agora e deixá-la sem mim. Portanto, queria estar acompanhada de alguém mais experiente que pudesse me dizer, por exemplo: “Olha, você não está bem, não tem condições, precisa voltar”. Porque é inegável que, com menos oxigênio, nossa capacidade de discernimento também diminui. Fui com a Adventure Consultants de novo. Eu queria ir para fazer o cume, me empenhar nisso, por isso precisa ter o máximo de segurança e retaguarda para conseguir meu intento.

Ana Elisa Boscarioli no Everest, cruzando uma das muitas fendas encontradas pelo caminho - Foto: Arquivo pessoal.

No Everest, cruzando uma das muitas fendas encontradas pelo caminho. Qualquer vacilo pode ser fatal – Foto: Arquivo pessoal.

AM: Para você, como é essa visão de alguns montanhistas de que o certo é não usar oxigênio, que com oxigênio fica muito fácil subir altas montanhas?
AEB: Em 1953, Edmund Hillary, o primeiro a chegar ao cume do Everest, usou oxigênio. Até Reinhold Messner chegar lá sem oxigênio, em 1978, foram 25 anos de ascensões com sua utilização. Pouquíssimas pessoas conseguem fazer isso. No meu caso, optar por usar oxigênio tem a ver com minha segurança e, mesmo assim, não foi nada fácil escalar. Cheguei aos 7.500 metros do Cho Oyu com muita dor de cabeça e, a partir daí, usei oxigênio. No Everest também, a partir da mesma altura, mas o ataque ao cume a partir dos 8.000 metros foi muito difícil. Anda-se lentamente, com frequência respiratória bem alta e, por muito pouco, desidratada e hipoglicêmica, não consegui chegar lá. Outra coisa é que o oxigênio suplementar não fica tão concentrado no sangue como acontece a baixas altitudes. Ele alivia algo como 1.000 ou 2.000 metros. Estando a 8.800 metros com oxigênio seria como estar a uns 7.000 metros sem, o que exige bastante. Acrescente a isso o esforço físico da caminhada, o peso das roupas e do calçado, além do equipamento.

AM: E a opção do Vitor Negrete** de não usar oxigênio?
AEB: O Vitor era muito forte e foi muito difícil o que ele fez. É difícil avaliar, mas talvez se ele estivesse acompanhado de um sherpa levando oxigênio para o caso de uma emergência, ele não tivesse morrido.

AM: Você tinha acabado de fazer o cume, ainda estava na montanha quando o Vitor morreu. Como você recebeu essa triste notícia?
AEB: Voltei para o colo sul, a 8.000 metros, depois de 11 horas para subir e 6 horas para descer do topo. Liguei para o Brasil para dizer que estava tudo bem, mas ninguém me disse nada para não me entristecer. Esgotada, dormi das 17h às 5h da madrugada seguinte. Liguei de novo quando acordei e aí fiquei sabendo o que tinha acontecido. De repente, meu feito perdeu o valor. Havia chegado ao cume da mesma montanha que levou meu amigo. Ficou um misto de felicidade e de mágoa dela.

AM: Você acha que o feito e o exemplo do Vitor, enquanto atleta e montanhista, principalmente para as novas gerações, será o de herói ou de irresponsável?
AEB: Vitor foi um herói. Ele chegou ao cume sem oxigênio e sozinho. Esse recorde brasileiro é dele. Escalamos juntos muitas vezes. Além de muito inteligente, ele fazia toda a estratégia de escalada. Tinha uma percepção muito grande da natureza e estava sempre me alertando sobre perigos. Ele calculava tudo muito bem e prestava atenção na segurança. Ele nunca foi irresponsável. Ele sabia o que estava fazendo.

AM: Você acha que o aspecto que você mencionou antes, de se ter menos oxigênio circulando, pode ter contribuído para ele ter calcula mal sua estratégia?
AEB: Não sei, não dá para saber. Nas imagens de cume nós achamos que ele estava bem. Pode ser que tenha tido um edema cerebral na descida. Não consigo julgar se ele errou em alguma coisa.

AM: Como você se sente por ter realizado um feito dessa importância? Acha que pode inspirar outras mulheres?
AEB: Interesso-me por desafios, por coisas que poucas pessoas fazem, principalmente por aquilo que parece que só homens fazem. Só eles escalam montanhas? Não, mulher também pode, mas são poucas as que conseguem fazer igual ou até melhor. Talvez não existam mais mulheres que escalem por aqui porque não temos montanhas, é um esporte difícil de ser praticado. E claro que gostaria de inspirá-las com meu exemplo. Fico superorgulhosa de ser a primeira brasileira a chegar lá, de levar nossa bandeira.

AM: Quanto lhe custou chegar ao cume do Everest? Você teve patrocinador?
AEB: Não tive patrocinador e me custou algo entre US$ 50.000 e US$ 80.000 com a estrutura que fui, para escalar pelo sul, pelo Nepal.

AM: Como você está lidando com o assédio da mídia?
AEB: Estou curtindo, principalmente quando alguém me dá os parabéns. Mas tem também aqueles que dizem: “Mas com oxigênio? É fácil!” ou “Como você deixa sua filha e vai arriscar sua vida?”. Tenho de saber lidar com elogios e com críticas.

AM: E o que sua filha pensa de você e do que você fez?
AEB: Ela está superorgulhosa, conta para todo mundo e fez questão que eu fosse à escola dela. Mostrei fotos, fiz palestra para crianças e para pais, respondi a perguntas que elas elaboraram e recebi uma medalha de argila que elas fizeram, pintada de verde e amarelo. Ela vai ficar velhinha e falar qeu a mãe dela foi a primeira brasileira a escalar o Everest.

AM: E os plano para o futuro? Voltar ao Aconcágua pela rota normal?
AEB: Isso também. E gostaria de fazer outro 8.000 metros, como o Shishapangma [8.013 metros no Tibet]. E agora acho que precisamos ter uma brasileira para terminar os sete cumes mais altos do sete continentes. Já fiz o Aconcágua e o Everest, faltam “só” cinco agora.

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Ana Elisa Boscarioli no topo do McKinley/Denali, completando seu projeto dos sete cumes - Foto: Arquivo pessoal.

Ana Elisa no topo do McKinley/Denali, completando seu projeto dos sete cumes – Foto: Arquivo pessoal.

*Os sete cumes e a data na qual Ana Boscarioli chegou ao topo de cada um:

  • Aconcágua (6.962 metros) – América do Sul/Argentina – 18/01/2003
  • Everest (8.848 metros) – Ásia/Nepal – 19/05/2006
  • Elbrus (5.642 metros) – Europa/Rússia – 06/08/2011
  • Vinson (4.892 metros) – Antártida – 06/01/2012
  • Kilimanjaro (5.892 metros) – África/Tanzânia – 21/09/2013
  • Carstensz Pyramid (4.884 metros) – Oceania/Nova Guiné – 29/10/2013
  • McKinley ou Denali (6.194 metros) – América do Norte/EUA/Alasca – 24/05/2014
Por curiosidade, veja quais são os sete cumes mais altos do mundo:
  • Everest (8.848 metros) – fronteira Nepal/Tibet
  • K2 (8.611 metros) – fronteira China/Paquistão
  • Kangchenjunga (8.586 metros) – fronteira Nepal/Índia
  • Lhotse (8.516 metros) – Nepal
  • Makalu (8.485 metros) – fronteira Nepal/Índia
  • Cho Oyu (8.188 metros) – fronteira Nepal/Tibet
  • Dhaulagiri (8.167 metros) – Nepal

**Vitor Negrete (1967-2006) foi um montanhista brasileiro que, entre outros feitos, chegou ao topo do Everest pela primeira vez em junho/2005 utilizando oxigênio suplementar. Em maio/2006, tentou o mesmo feito, numa aventura solitária e sem oxigênio. Ele chegou ao topo, mas, desgastado fisicamente, não conseguiu terminar a descida. Morreu por hipotermia e por falta de oxigênio. Atendendo a seu desejo – de o seu corpo ser deixado na montanha se viesse a morrer em alguma de suas aventuras -, foi enterrado na neve próximo do acampamento 3 do Everest, a 7.500 metros de altitude.

Amandina Morbeck

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